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As Novas Regras do Atesta CFM e os Impactos na Emissão de Atestados Médicos: Análise Jurídica, Prática e Jurisprudencial

Por Allexsandre Gerent

Publicado em 18/12/2024
As Novas Regras do Atesta CFM e os Impactos na Emissão de Atestados Médicos: Análise Jurídica, Prática e Jurisprudencial

A Resolução CFM nº 2.382/2024, publicada pelo Conselho Federal de Medicina, instituiu a obrigatoriedade da plataforma "Atesta CFM" como o sistema oficial e exclusivo para emissão, gerenciamento e armazenamento de atestados médicos físicos e digitais em território nacional. Tal regulamentação trouxe inovações relevantes com o objetivo de combater fraudes, garantir maior segurança e autenticidade aos atestados médicos e facilitar a rastreabilidade dessas informações. No entanto, a compulsoriedade da ferramenta gerou intensas discussões jurídicas, sociais e práticas, que culminaram na suspensão de seus efeitos pela decisão liminar proferida no processo nº 1087770-91.2024.4.01.3400, em trâmite na 3ª Vara Federal Cível do Distrito Federal.

O sistema "Atesta CFM" tem como fundamento central a criação de um ambiente digital seguro para a emissão de atestados médicos. A plataforma exige a identificação do paciente mediante apresentação de documento com foto, a utilização de certificação digital por parte do médico e a centralização dos atestados em um ecossistema único gerido pelo Conselho Federal de Medicina. Com isso, objetiva-se aprimorar a rastreabilidade dos atestados, eliminando fraudes recorrentes e assegurando a integridade das informações.

Entre os pontos positivos da Resolução, destaca-se a maior segurança na emissão dos atestados médicos, especialmente em face do uso de tecnologias de certificação digital e de mecanismos de verificação baseados em QR codes e chaves criptográficas. A rastreabilidade proporcionada pela plataforma permite identificar a origem e a validade dos atestados de forma rápida e eficiente, contribuindo para a eliminação de documentos falsos, que frequentemente geram prejuízos a empresas e ao sistema de saúde. Além disso, a digitalização dos atestados melhora a gestão documental tanto para os profissionais médicos quanto para os pacientes e empregadores, facilitando o acesso e a organização dessas informações.

Contudo, a Resolução também apresenta pontos negativos e desafios significativos. O principal deles diz respeito à exclusão digital, especialmente em regiões com infraestrutura de internet limitada ou inexistente. Médicos e pacientes em áreas rurais e remotas enfrentam dificuldades práticas para acessar a plataforma, o que pode inviabilizar o atendimento médico e comprometer o direito fundamental à saúde. Outro aspecto problemático está relacionado à privacidade e proteção de dados pessoais, uma vez que a centralização das informações médicas sensíveis em uma única base de dados administrada pelo CFM gera preocupações sobre vazamentos, usos indevidos e desrespeito à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

Além disso, a Resolução impõe um ônus econômico significativo para médicos autônomos e pequenas clínicas, que precisarão investir em infraestrutura tecnológica, treinamento e certificação digital. O monopólio implícito criado pelo CFM ao exigir a integração de outras plataformas ao sistema "Atesta CFM" também levanta questionamentos sobre livre concorrência e equilíbrio de mercado, afastando alternativas viáveis já disponíveis. A exigência da emissão exclusiva por meio digital ou em blocos físicos fornecidos pela plataforma também ignora a realidade de muitos municípios brasileiros, onde a prática médica ainda depende do formato físico convencional.

Diante desses desafios, o sistema "Atesta CFM" foi questionado judicialmente por meio da Ação Anulatória nº 1087770-91.2024.4.01.3400, ajuizada pelo Movimento Inovação Digital (MID) perante a 3ª Vara Federal Cível do Distrito Federal. A decisão liminar deferida pelo juiz reconheceu, em análise perfunctória, a extrapolação do poder regulamentar do Conselho Federal de Medicina, suspendendo os efeitos da Resolução CFM nº 2.382/2024. A fundamentação do magistrado expôs diversos vícios e inconsistências no ato normativo, que comprometem sua validade jurídica e constitucional.

O juiz destacou, em primeiro lugar, que a Resolução impôs obrigações que somente poderiam ser estabelecidas por lei, violando o princípio constitucional da legalidade, previsto no artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal. Além disso, o magistrado reconheceu que a Resolução invadiu competência privativa da União Federal para legislar sobre a organização e as condições para o exercício das profissões (art. 22, XVI, CF/88), bem como regulamentar o uso de documentos médicos digitais, conforme já disposto na Lei nº 14.063/2020. Essa lei, que trata do uso de assinaturas eletrônicas em documentos de saúde, já estabelece critérios claros para a validação dos atestados médicos, sem impor exclusividade de plataformas.

Outro ponto de destaque na decisão foi a violação do princípio da proporcionalidade. O juiz observou que a Resolução foi editada sem a devida Análise de Impacto Regulatório (AIR) ou Avaliação de Resultado Regulatório (ARR), etapas essenciais para a elaboração de normas que geram impactos significativos em diversos setores. A imposição imediata da plataforma "Atesta CFM", sem considerar a realidade socioeconômica e tecnológica do país, foi considerada desproporcional e potencialmente lesiva ao direito fundamental de acesso à saúde, especialmente em áreas carentes de infraestrutura digital.

Além disso, a decisão abordou a problemática da concentração indevida de dados sensíveis, apontando a ausência de salvaguardas adequadas para garantir a proteção das informações armazenadas. A centralização de atestados médicos em uma única plataforma gerida pelo CFM levanta preocupações sobre o cumprimento das normas da LGPD, principalmente em relação à minimização de dados, consentimento e segurança no tratamento das informações pessoais.

Por fim, o magistrado reconheceu que a Resolução cria uma situação de monopólio, colocando o CFM como agente econômico ao oferecer serviços de validação pagos a empresas e ao impor a integração obrigatória de outras plataformas ao seu sistema. Tal medida foi considerada um desrespeito à livre concorrência e à ordem econômica, criando barreiras injustificadas no mercado de soluções tecnológicas para a saúde.

A decisão liminar, ao suspender os efeitos da Resolução CFM nº 2.382/2024, reafirma a importância do controle jurisdicional sobre atos normativos infralegais que extrapolam os limites do poder regulamentar e violam direitos fundamentais. O magistrado demonstrou sensibilidade ao considerar os impactos práticos, sociais e econômicos da norma, protegendo tanto o direito dos médicos ao livre exercício profissional quanto o direito dos pacientes ao acesso equânime à saúde.

Em conclusão, embora a proposta da plataforma "Atesta CFM" represente um avanço em termos de segurança e modernização, sua implementação compulsória careceu de adequação jurídica e de um planejamento regulatório mais equilibrado. A decisão judicial ressalta a necessidade de um debate mais amplo e participativo entre os atores envolvidos, buscando soluções que conciliem a inovação tecnológica com o respeito aos direitos fundamentais e às particularidades regionais do país. O futuro dessa normativa dependerá do diálogo institucional e da construção de alternativas que garantam a segurança dos atestados médicos sem impor ônus desproporcionais aos profissionais e à sociedade.

Allexsandre Gerent é conselheiro da CDL Florianópolis, advogado (OAB/SC 11.217), sócio fundador da Gerent Advocacia Trabalhista, professor, pós-graduado em direito do trabalho e direito tributário, mestre em ciências políticas.

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